02/02/09

Viver em Portugal, para mim

[Lourenço Bray]


Esta é, literalmente, a minha 8ª tentativa para escrever este texto. O tema leva a uma dispersão enorme no fio de raciocínio. Viver num país são muitas coisas ao mesmo tempo. No fundo, é toda a nossa vida. Nas minhas tentativas anteriores, acabo por cobrir uma série de temas sociais, económicos ou culturais, mas incorreria em erro se dissesse que a minha vida é, de alguma forma, moldada pelo que vejo no telejornal ou nos jornais, ou que se discute nos blogues, no que a Portugal respeita. Confesso que sigo com muito mais interesse e entusiasmo as presidenciais americanas do que as nossas eleições. Os nossos partidos políticos, cronistas ou opinion-makers, já desisti de lhes prestar atenção.


Não vejo cinema português a não ser que o filme passe o crivo crítico fora de Portugal, o que quase nunca acontece. Não leio livros portugueses a não ser que sejam relevantes para mim, não os leio por serem de autores portugueses. Não oiço música portuguesa a não ser que ela seja mais relevante para mim (ie boa). Não me lembro da última vez que ouvi uma opinião do professor Marcelo ou li a coluna do José Luís Delgado, mas todos os dias leio opiniões. A comédia, a arte, a literatura, a música, tudo o que se faz em Portugal é-me infinitamente menos relevante do que as manifestações de outros países que não têm uma expressão nacional quando me são apresentadas, mas valem apenas pelo que são. Bebo vinho português porque é o melhor, e não porque é português. A política, os temas, a cultura ou economia interessam-me em função da sua relevância e não da sua nacionalidade ou proveniência. Estou a ler “Conhecer Jesus de Nazaré”, escritor por Bento XVI. O que um bispo português diz a propósito dos casamentos com muçulmanos interessa-me zero. É só um exemplo. Vêm aí mais exemplos com a proposta de casamentos gay. Vamos ter o país muito entretido numa discussão irrelevante. Para quê discutir algo que não só é inevitável como é justo, como era o debate da legalização do aborto ou seria o da eutanásia? Todas as mudanças chegam a Portugal com décadas de atraso e que seria bem melhor e mais saudável saltarmos algumas etapas em vez de discutir merdas que já foram mais do que discutidas e compreendidas há 50 anos no resto do mundo. Se calhar era melhor perceber como aconteceram essas mudanças, e porquê, e decidir com base no que defensores dos direitos civis americanos disseram há 40 anos.


No fundo, a minha vida em Portugal é essencialmente a minha vida em Lisboa, neste momento em Benfica, em breve em Alvalade, o meu trabalho em Alcântara, férias raríssimas no Baleal (perto de Peniche), raids BTT sobretudo na zona Oeste, Torres Vedras e claro, a pequena aldeia das Carreiras que fica a 12km de Torres Vedras, onde vive Christianne Boeckx Bray e as minhas três irmãs, a Lucy, a Patinhas e a Julieta.


Escrever um texto sobre isso não é especialmente interessante, ou se é, não me apetece. A nossa vida num país é definida pelo microcosmos onde ela se desenrola. Se eu for assaltado à saída de casa, se calhar direi que viver em Portugal é perigoso porque há muito crime. Se eu tiver um bom emprego, ganhar bem e tudo, posso dizer que viver em Portugal para mim é muito mais confortável do que seria se vivesse em Londres ou Nova Iorque e trabalhasse num McDonalds. Mas mesmo assim, mesmo assim, talvez a única generalização nacional que eu me atrevo a fazer é uma: afastamento. Em Portugal, está-se longe da história e do mundo. Está-se longe de tudo, das grandes guerras, do terrorismo, do progresso económico, da tecnologia, dos caminhos-de-ferro, dos movimentos intelectuais e filosóficos significativos, de movimentos musicais significativos e originais, da cultura, das universidades a sério, da arte, da política, da decisão, do poder, de tudo. Tudo chega cá sob a forma de ecos distorcidos e ténues quando é processado pela nossa sociedade atávica, pobre e atrasada. Andámos dois séculos com ensino jesuíta e no resto da Europa universidades reais despontavam, o Decartes pensava. Andávamos nós a ver Virgens Marias a flutuar por cima de oliveiras que balbuciavam segredos anticomunistas e nos EUA Woodrow Wilson pavimentava o caminho para a sociedade das nações e paz mundial, a Europa em completa convulsão e guerra, na Rússia a revolução, e o JRR Tolkien iniciava o esboço do Silmarillion. Esse isolamento reflecte-se em coisas muito concretas como a nossa demografia ou dimensão. Andávamos nós trancados no fascismo bafiento e os Beatles já tinham existido, o que para mim parece quase impossível. Hoje em dia ainda temos os fósseis comunistas estalinistas que ainda não perceberam (vão perceber daqui a 20 anos como de costume) que a sua forma de ver o mundo não é correcta. O Almeida Santos ainda ontem diz que a sociedade actual é uma “máquina de fazer pobres”, pelos vistos o Almeida Santos preferia a sociedade portuguesa em 1980 ou não conhece o caso da China, ou talvez a sua definição de pobre seja alguém que é pobre quando há pessoas que não são pobres e que quando são todos pobres, ninguém é pobre, por exemplo, a Coreia do Norte não é uma fábrica de fazer pobres, a Venezuela não é uma máquina de fazer pobres. Não sei, mas daqui a 20 anos os Almeida Santos ainda estarão a mastigar a realidade de agora. Lisboa, a única cidade portuguesa de dimensão relativa surge em redor do seu porto de da sua vocação marítima, de contacto com o resto do mundo e surgiu num momento em que isso era significativo (hoje Lisboa seria apenas um resort turístico com hotéis espanhóis). Basta subir 10km, descer 10km ou ir para o interior 10km e chegamos à ruralidade. Isto acontece em todos os países do mundo, a população concentra-se nas cidades, no entanto, num país como os EUA, vastíssimo e com pouca densidade populacional, mais de dois terços da população vive nas grandes áreas urbanas, cidades que terão dimensão relativa muito superior à que Lisboa tem para Portugal, apesar de sermos um país macrocéfalo. De facto, Lisboa em si é uma migalha. Nova Iorque tem quase 20 milhões de habitantes, Londres tem perto de 7,5 milhões, Paris 12 milhões, e em todas estas cidades a percentagem de imigrantes é muito superior à que existe em Lisboa, que de cosmopolita tem muito pouco hoje (já teve). Isto conta meus amigos, isto conta para a nossa maneira de pensar e de ser, de conviver. Isto explica desde o encanto provinciano do nosso ministro com a tecnologia, como explica o entusiasmo febril em torno de portugueses “de quem se fale lá fora”, como os nossos jogadores de futebol, como explica a melancolia, como explica o facto de isto ser uma aldeia e das nossas convenções sociais terem sobretudo a ver com um enorme situacionismo e perpetuação do status quo do que com verdadeiros movimentos civis baseados em convicções e em valores. Nunca me esquecerei do que foi a manifestação contra a guerra no Iraque, a que fui, convencido que em Lisboa viveríamos algo como se viveu no resto do mundo, para apenas encontrar um desfile de bloquistas, sindicalistas, comunistas, anti-americanos primários, putos a ouvir Rage Against The Machine (tb gosto)que não tinham qualquer espécie de raciocínio próprio, que não os movia o caso concreto do Iraque mas sim uma posição enquistada de esquerda vs direita, da mesma forma que a nossa direita apoiava os EUA por oposição à esquerda e repete como uma cassete um conservadorismo bafiento em que se recusam a perceber a realidade como ela é e, eventualmente, mudar de opinião ou perceber as pessoas. No mundo, as manifestações eram civis, não tinham pessoas a distribuir autocolantes de sindicatos. Como explica o meu profundo desinteresse pelo que Portugal diz, faz e mostra.


Eu gosto muito de viver em Portugal e se isto não estalar, vou gostar de viver. Este isolamento tem enormes vantagens (isso foi algo que Salazar, apesar de tudo, compreendeu) e uma das vantagens prende-se com a muito baixa tensão social ou económica a que somos, por enquanto sujeitos. Penso que em Portugal existe um certo conforto de vida que tem valor e que também diz respeito aos activos naturais deste país, já falei no vinho, mas ficava triste de viver num país sem sol, mar, serras, campos, vinhas, rios e a minha Lisboa velhinha e cheia subidas e descidas e sem estas pessoas, as pessoas do meu microcosmos, sem os meus sítios. Portugal não sei, mas posso dizer que adoro isto, desde os arrumadores chungosos que são bem-educados até aos nossos políticos, são únicos. Os portugueses são únicos é muitíssimo bom viver no meio dos portugueses, daria em doido se tivesse de viver no meio de pessoas mais assertivas, menos melancólicas, mais práticas, menos filosóficas, mais competentes, menos descontraídas. Com a globalização, ficamos também expostos às mesmas tensões que o resto mundo. Esta crise financeira global é um exemplo claro. Mas existem outras mudanças, mais profundas. A nossa sociedade está cada vez mais nivelada com o padrão internacional, graças à revolução que tem sido a sociedade de informação globalizada. Também temos uma muito maior circulação de pessoas e não estamos, especialmente os jovens e as elites socais, tão isoladas do resto do mundo. As coisas vão mudando e vão mudar, à medida que a nossa periferia geográfica se tornar irrelevante.


Eu avisei, este texto não tem pés nem cabeça. Obrigado.

1 comentário:

  1. Este texto, por acaso, até lhe saiu muito assertivo. Simples e preciso. Nem parece coisa de português. :)
    Já morei em vários países (Rússia, Ucrania, Libano, Alemanha) e agora estou morando nos EUA... Finalmente tenho saudades do reino da parvónia (como antigamente chamava à pátria...) e subscrevo tudo o que diz neste escrito.
    O isolamento, a vida na periferia do mundo... Outrora defeitos sufocantes, tornaram-se de repente na maior das atracções portuguesas. Portugal é sem dúvida nenhuma um excelente país para se viver. Um país generoso, bondoso como há poucos.
    Obrigada pela lucidez e disciplina de pensamento.
    Anika Etkina
    agrichetchkine@aol.com

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