27/04/09

Não vá de maduro o Maio cair


[Luís Filipe Cristóvão]

Passados trinta e cinco anos da revolução que trouxe o regime democrático e a liberdade para o nosso país, muitas perguntas se poderão fazer: “valeu a pena?” não é uma delas. Estamos, neste momento, muito melhor do que estávamos antes. Temos melhores condições de vida, maior distribuição da riqueza, melhores índices na educação, mais voz na política internacional. Podemos, acima de tudo, dizer o que nos vai na cabeça, criticar o governo, escrever e publicar sem que uma qualquer comissão nos tenha que aprovar o pensamento. Se há coisa que posso agradecer aos que vieram antes de mim é o facto de ter conseguido viver trinta anos sem ser preso, nem investigado.


Mas podemos nós hoje fazer a festa sem ao mesmo tempo gritar, a 25 de Abril de 2009, que somos, eu e tantos outros que se atrevem ao sonho, uma geração traída? Porque as promessas que nos foram feitas não vieram assinadas pelo povo nem pelo MFA. Chegaram-nos pelas mãos dos Presidentes da República e pelos sucessivos governos de PS e PSD liderados por Mário Soares e Cavaco Silva, entre outros. Longe de sentir a necessidade de discutir a validade dos dois vinte e cincos, o de Abril e o de Novembro, o que a minha geração procura é uma resposta para que, passados os anos 80 e toda a promessa de modernidade, desenvolvimento e conquistas sociais, nos encontremos no mesmo buraco de onde nos pareceu que tínhamos saído há uns anos atrás.


Estamos a falhar na fixação da memória. O facto de se continuar a confundir ideologia com escolhas tácticas ou com justiças profissionais, o facto de se continuar a lamentar ou a acusar o vizinho da frente dos erros do pós-25 de Abril, continua a ofuscar-nos a possibilidade de pegarmos a realidade com as nossas mãos. O homem português do século XXI quer fazer, inventar, saber e descobrir, colocando as suas prioridades na acção, mais que na reflexão, para a qual nos falta uma ética e uma moral. Nunca houve da parte da Escola, nestes anos, um gesto que preparasse as novas gerações para a reflexão e aprendizagem dos valores da liberdade e da democracia implantados pelo 25 de Abril. Demasiado recente, continuam a dizer: mas se ao homem de hoje estiver oculta a realidade de ontem, terá ele clareza de espírito para as suas posições?


Estamos a falhar na promoção das igualdades. Temos uma larga percentagem de pobres em Portugal, e com o aumento do desemprego, essa percentagem cresce ainda mais. A solução para a pobreza não se faz só de subsídios, faz-se na educação e na promoção da participação na sociedade. Mas na escola o que se mede agora são os resultados. E a participação, hoje em dia, é telefonar para os fóruns da Antena 1, desleixando tantas vezes a possibilidade de participarmos voluntariamente numa associação, num encontro ou numa conversa, entre as pessoas da nossa terra. A sociedade mediatizada não será culpa dos portugueses, mas nós lutámos e conquistámos a liberdade em 1974 e agora só levantamos os braços para que o telemóvel tenha rede, no buraco onde vivemos, para enviar uma última mensagem escrita.


Sim, hoje somos mais livres para ver e apercebermo-nos do mal em que vivemos. E a crítica serve a quem fez a revolução, a quem esqueceu a revolução, a quem sequer a viveu: também eu sinto a culpa do político que não sou capaz de ser, deixando que a mediocridade se instale e utilize as minhas costas para chegar um degrau acima: eu também sou um traidor da geração traída da qual faço parte. O eu aqui não é indignação nem vitimização. O eu aqui é um gesto de salvação pela poesia, pela utopia que será sempre o motor de todas as conquistas do homem. Porque é ela que nos permite fazer a diferença, quando toda a gente quer que sejamos iguais. Por isso eu grito a geração traída, para que ela se sinta tocada, se identifique, e talvez acorde a tempo. Não vá, mais depressa, de maduro o Maio cair.

02/02/09

Viver em Portugal, para mim

[Lourenço Bray]


Esta é, literalmente, a minha 8ª tentativa para escrever este texto. O tema leva a uma dispersão enorme no fio de raciocínio. Viver num país são muitas coisas ao mesmo tempo. No fundo, é toda a nossa vida. Nas minhas tentativas anteriores, acabo por cobrir uma série de temas sociais, económicos ou culturais, mas incorreria em erro se dissesse que a minha vida é, de alguma forma, moldada pelo que vejo no telejornal ou nos jornais, ou que se discute nos blogues, no que a Portugal respeita. Confesso que sigo com muito mais interesse e entusiasmo as presidenciais americanas do que as nossas eleições. Os nossos partidos políticos, cronistas ou opinion-makers, já desisti de lhes prestar atenção.


Não vejo cinema português a não ser que o filme passe o crivo crítico fora de Portugal, o que quase nunca acontece. Não leio livros portugueses a não ser que sejam relevantes para mim, não os leio por serem de autores portugueses. Não oiço música portuguesa a não ser que ela seja mais relevante para mim (ie boa). Não me lembro da última vez que ouvi uma opinião do professor Marcelo ou li a coluna do José Luís Delgado, mas todos os dias leio opiniões. A comédia, a arte, a literatura, a música, tudo o que se faz em Portugal é-me infinitamente menos relevante do que as manifestações de outros países que não têm uma expressão nacional quando me são apresentadas, mas valem apenas pelo que são. Bebo vinho português porque é o melhor, e não porque é português. A política, os temas, a cultura ou economia interessam-me em função da sua relevância e não da sua nacionalidade ou proveniência. Estou a ler “Conhecer Jesus de Nazaré”, escritor por Bento XVI. O que um bispo português diz a propósito dos casamentos com muçulmanos interessa-me zero. É só um exemplo. Vêm aí mais exemplos com a proposta de casamentos gay. Vamos ter o país muito entretido numa discussão irrelevante. Para quê discutir algo que não só é inevitável como é justo, como era o debate da legalização do aborto ou seria o da eutanásia? Todas as mudanças chegam a Portugal com décadas de atraso e que seria bem melhor e mais saudável saltarmos algumas etapas em vez de discutir merdas que já foram mais do que discutidas e compreendidas há 50 anos no resto do mundo. Se calhar era melhor perceber como aconteceram essas mudanças, e porquê, e decidir com base no que defensores dos direitos civis americanos disseram há 40 anos.


No fundo, a minha vida em Portugal é essencialmente a minha vida em Lisboa, neste momento em Benfica, em breve em Alvalade, o meu trabalho em Alcântara, férias raríssimas no Baleal (perto de Peniche), raids BTT sobretudo na zona Oeste, Torres Vedras e claro, a pequena aldeia das Carreiras que fica a 12km de Torres Vedras, onde vive Christianne Boeckx Bray e as minhas três irmãs, a Lucy, a Patinhas e a Julieta.


Escrever um texto sobre isso não é especialmente interessante, ou se é, não me apetece. A nossa vida num país é definida pelo microcosmos onde ela se desenrola. Se eu for assaltado à saída de casa, se calhar direi que viver em Portugal é perigoso porque há muito crime. Se eu tiver um bom emprego, ganhar bem e tudo, posso dizer que viver em Portugal para mim é muito mais confortável do que seria se vivesse em Londres ou Nova Iorque e trabalhasse num McDonalds. Mas mesmo assim, mesmo assim, talvez a única generalização nacional que eu me atrevo a fazer é uma: afastamento. Em Portugal, está-se longe da história e do mundo. Está-se longe de tudo, das grandes guerras, do terrorismo, do progresso económico, da tecnologia, dos caminhos-de-ferro, dos movimentos intelectuais e filosóficos significativos, de movimentos musicais significativos e originais, da cultura, das universidades a sério, da arte, da política, da decisão, do poder, de tudo. Tudo chega cá sob a forma de ecos distorcidos e ténues quando é processado pela nossa sociedade atávica, pobre e atrasada. Andámos dois séculos com ensino jesuíta e no resto da Europa universidades reais despontavam, o Decartes pensava. Andávamos nós a ver Virgens Marias a flutuar por cima de oliveiras que balbuciavam segredos anticomunistas e nos EUA Woodrow Wilson pavimentava o caminho para a sociedade das nações e paz mundial, a Europa em completa convulsão e guerra, na Rússia a revolução, e o JRR Tolkien iniciava o esboço do Silmarillion. Esse isolamento reflecte-se em coisas muito concretas como a nossa demografia ou dimensão. Andávamos nós trancados no fascismo bafiento e os Beatles já tinham existido, o que para mim parece quase impossível. Hoje em dia ainda temos os fósseis comunistas estalinistas que ainda não perceberam (vão perceber daqui a 20 anos como de costume) que a sua forma de ver o mundo não é correcta. O Almeida Santos ainda ontem diz que a sociedade actual é uma “máquina de fazer pobres”, pelos vistos o Almeida Santos preferia a sociedade portuguesa em 1980 ou não conhece o caso da China, ou talvez a sua definição de pobre seja alguém que é pobre quando há pessoas que não são pobres e que quando são todos pobres, ninguém é pobre, por exemplo, a Coreia do Norte não é uma fábrica de fazer pobres, a Venezuela não é uma máquina de fazer pobres. Não sei, mas daqui a 20 anos os Almeida Santos ainda estarão a mastigar a realidade de agora. Lisboa, a única cidade portuguesa de dimensão relativa surge em redor do seu porto de da sua vocação marítima, de contacto com o resto do mundo e surgiu num momento em que isso era significativo (hoje Lisboa seria apenas um resort turístico com hotéis espanhóis). Basta subir 10km, descer 10km ou ir para o interior 10km e chegamos à ruralidade. Isto acontece em todos os países do mundo, a população concentra-se nas cidades, no entanto, num país como os EUA, vastíssimo e com pouca densidade populacional, mais de dois terços da população vive nas grandes áreas urbanas, cidades que terão dimensão relativa muito superior à que Lisboa tem para Portugal, apesar de sermos um país macrocéfalo. De facto, Lisboa em si é uma migalha. Nova Iorque tem quase 20 milhões de habitantes, Londres tem perto de 7,5 milhões, Paris 12 milhões, e em todas estas cidades a percentagem de imigrantes é muito superior à que existe em Lisboa, que de cosmopolita tem muito pouco hoje (já teve). Isto conta meus amigos, isto conta para a nossa maneira de pensar e de ser, de conviver. Isto explica desde o encanto provinciano do nosso ministro com a tecnologia, como explica o entusiasmo febril em torno de portugueses “de quem se fale lá fora”, como os nossos jogadores de futebol, como explica a melancolia, como explica o facto de isto ser uma aldeia e das nossas convenções sociais terem sobretudo a ver com um enorme situacionismo e perpetuação do status quo do que com verdadeiros movimentos civis baseados em convicções e em valores. Nunca me esquecerei do que foi a manifestação contra a guerra no Iraque, a que fui, convencido que em Lisboa viveríamos algo como se viveu no resto do mundo, para apenas encontrar um desfile de bloquistas, sindicalistas, comunistas, anti-americanos primários, putos a ouvir Rage Against The Machine (tb gosto)que não tinham qualquer espécie de raciocínio próprio, que não os movia o caso concreto do Iraque mas sim uma posição enquistada de esquerda vs direita, da mesma forma que a nossa direita apoiava os EUA por oposição à esquerda e repete como uma cassete um conservadorismo bafiento em que se recusam a perceber a realidade como ela é e, eventualmente, mudar de opinião ou perceber as pessoas. No mundo, as manifestações eram civis, não tinham pessoas a distribuir autocolantes de sindicatos. Como explica o meu profundo desinteresse pelo que Portugal diz, faz e mostra.


Eu gosto muito de viver em Portugal e se isto não estalar, vou gostar de viver. Este isolamento tem enormes vantagens (isso foi algo que Salazar, apesar de tudo, compreendeu) e uma das vantagens prende-se com a muito baixa tensão social ou económica a que somos, por enquanto sujeitos. Penso que em Portugal existe um certo conforto de vida que tem valor e que também diz respeito aos activos naturais deste país, já falei no vinho, mas ficava triste de viver num país sem sol, mar, serras, campos, vinhas, rios e a minha Lisboa velhinha e cheia subidas e descidas e sem estas pessoas, as pessoas do meu microcosmos, sem os meus sítios. Portugal não sei, mas posso dizer que adoro isto, desde os arrumadores chungosos que são bem-educados até aos nossos políticos, são únicos. Os portugueses são únicos é muitíssimo bom viver no meio dos portugueses, daria em doido se tivesse de viver no meio de pessoas mais assertivas, menos melancólicas, mais práticas, menos filosóficas, mais competentes, menos descontraídas. Com a globalização, ficamos também expostos às mesmas tensões que o resto mundo. Esta crise financeira global é um exemplo claro. Mas existem outras mudanças, mais profundas. A nossa sociedade está cada vez mais nivelada com o padrão internacional, graças à revolução que tem sido a sociedade de informação globalizada. Também temos uma muito maior circulação de pessoas e não estamos, especialmente os jovens e as elites socais, tão isoladas do resto do mundo. As coisas vão mudando e vão mudar, à medida que a nossa periferia geográfica se tornar irrelevante.


Eu avisei, este texto não tem pés nem cabeça. Obrigado.

29/01/09

O banquinho

[Pedro Afonso]


aqui agora, cospe, cospe a espuma que te sobra dos dias dos cantos da boca. aqui agora, em todo o lado, cospe. neste país? cospe, cospe tanto como em qualquer outro país terias que cuspir. é melhor, pior? não será muito mais nem muito menos que em qualquer outro. porquê... temos esperança? queremos um modelo, alguma referência? olhemos à nossa volta, daqui, agora: há algo que valha a pena seguir? alguns movimentos desobedientes, alguns rasgos no nevoeiro? mas esses são todos reprimidos exactamente pelo que chamamos países. movimentos cívicos? associações? rupturas? alternativas? o quê? neste país, em qualquer outro, achamos mesmo que é possível mudar? é que quando falo em mudar não me refiro a colocar pensos rápidos - ou breves, como se deveriam chamar - nem a nos ligarmos um pouco a algum ventilador mais agradável do que este fumo que respiramos. faz bem pensar no que se passa aqui agora? no que está mal? pensar onde estão as feridas, quais são os fantasmas, no que poderia ser feito? fará bem? eu não sei... mas quem sou eu... neste país aqui agora, sou um entre muitos em cima do banquinho com a corda ao pescoço. não, não estou a falar (apenas) da corda económica, mas da corda da desesperança nisto tudo (no que, ao que parece, se inclui portugal), a corda que todo e qualquer indivíduo aqui agora tem ao pescoço. o que fazer? irmo-nos aguentando no banquinho para não cair, ou fazê-lo cair a ele, muito de repente? chamo a essa corda aqui agora, chamo ao banquinho país.

pessimismo? talvez seja pessimista, talvez possamos dizer, apontar, que este é mais um defeito dos "portugueses", ou de uns quantos, ou só meu. será que um país pode mudar (para melhor) dentro de um mundo que não o faz? e este melhor é para quem? se calhar até muda, vai ficando melhor para quem precisa de ter a massa humana controlada pela asfixia económica e pela alienação social. para quem precisa disso, creio que o mundo e os países vão melhorando.

dentro disto há algumas coisas que poderiam melhorar, é verdade. podíamos ter vidas mais agradáveis, melhores condições para o consumo, podíamos alimentar melhor as grandes máquinas capitalistas, podíamos ter mais espaço público para a cultura, para esta desenvolver-se enquanto pensamento crítico e, claro, enquanto produto de consumo. podíamos melhorar para salvar a banca e a bolsa, melhorar para maior sucesso das empresas de sucesso, que sucede terem o sucesso proporcional ao que exploram quem nelas trabalha. podíamos melhorar para estar ao mesmo nível dos outros países ocidentais que servem de plataforma a quem alimenta o mundo de imundice. podíamos melhorar, podíamos.

talvez não se vá assim tão mal, se o caminho for a derrocada total. o pior é que haverá sempre quem não o permita, alguém que nos ensinará sempre como não cair, como manter o banquinho equilibrado e corpo quietinho de forma a que a corda nem deixe marcas no pescoço.

24/01/09

uma hiperbólica falta de hype


[Luís Filipe Cristóvão]


uma das características do ser português é a revolta interior contra o sucesso alheio: há sempre alguém que tem mais sorte e mais padrinhos a fazer exactamente a mesma coisa que nós fazemos, beneficiando assim da atenção e do carinho mediático em detrimento de nós próprios, que somos muito melhores, mas que ficamos do lado dos excluídos destes sucessos.

essa revolta interior é manifesta em artigos de opinião em jornais, em entrevistas, em blogues, nas rádios, nas ruas, nos cafés, até em casa, entre membros da mesma família. existe uma queixa generalizada sobre cunhas e padrinhos, sendo até difícil de perceber se, estatisticamente, seria possível existerem desses em tal quantidade que justificasse que Portugal andasse assim à bolina desta ideia.

faltará, ainda assim, perceber que o nosso problema não é sermos pequeninos, o nosso problema é termos uma hiperbólica falta de hype. o que significa isso? significa que nos falta ter a capacidade de nos tornarmos especiais alvo da atenção de quem promove a chamada da atenção aos outros. mesmo quando somos muito bons, temos que ser diferentes, se quisermos ter, em tempo útil (a curto prazo), um prémiozinho como uma capa de jornal ou uma entrevista na televisão.

isso é intrinsecamente mau? não, não é. ter hype é um desafio constante: pelo que se trabalha para o ter e pelas pressões que se sofrem por o não ter. há quem o tenha enquanto jovem (e aí o trabalho é menor, mas a pressão castrante), há quem o tenha enquanto velho sábio (e aí o trabalho foi imenso e a pressão, um tanto ou quanto, "cagativa"). para quem o tem na meia-idade, bem, apenas podemos aconselhar para não o gastar todo em miúdas novas.

o que não é mesmo nada produtivo é a revolta anti-hype-alheio. amigos, não vale mesmo a pena. concentrem-se no que sabem fazer e deixem o "barulho das luzes" para os outros. há momentos em que a melhor forma de se ser português é, mesmo, não se ser português tanto assim.

14/01/09

A quase certeza de uma possibilidade

[manuel a. domingos]

José Gil, no livro Portugal, Hoje – O medo de existir, defende que Portugal é o país da não-inscrição. O autor define inscrição como tudo aquilo que produz real e que se inscreve nesse mesmo real. Assim, segundo este autor, em Portugal pouco ou nada se inscreve, pouco ou nada produz real.

Desta maneira, talvez se entenda melhor o facto de uma revolução como o 25 de Abril não ter sentado no banco dos réus 50 anos de ditadura. A impunidade é total e absoluta. Quantos agentes da PIDE foram julgados e condenados pelos crimes que cometeram? Não nos podemos esquecer que muitos desses agentes torturaram e mataram pessoas, mas hoje são feitas biografias sobre alguns desses agentes. Onde estão os julgamentos dos responsáveis pela irresponsabilidade que foi a Guerra Colonial? Como se entende que um ditador como Salazar tenha sido o vencedor, já em plena democracia, de um “concurso” de popularidade? Como se entende que um ex-ministro da educação do Estado Novo – que, por muito mérito que possa ter, pactuou com um regime ditatorial – tenha um programa de televisão onde conta estórias sobre Portugal, sendo considerado por muitos como um grande e brilhante comunicador, quando tem no seu currículo a primeira (e única) carga policial sobre estudantes alguma vez ordenada por um ministro da educação?

Ora, o Portugal de hoje é reflexo do Portugal de ontem, isto é, de 50 anos de ditadura que não foi julgada por uma revolução. Repito: re-vo-lu-ção. Na realidade, a impunidade de um ditadura foi legitimada por uma revolução que instalou uma democracia.

É claro que não podemos esquecer que a revolução de Abril foi festejada e recebida de braços abertos, apesar da incerteza dos primeiros anos e da possibilidade de ela ser apenas «uma simples mudança de cenários gastos que não alteraria o pacatíssimo e delicioso viver à-beira mar plantado» (Eduardo Lourenço). No entanto, passados todos estes anos, essa possibilidade é hoje quase uma certeza.

13/01/09

Portugal multicultural

[Maria João Lopes Ferandes]

O desafio foi-me lançado e é muito difícil fazer uma análise sobre o aqui e agora de Portugal, sinto-me demasiado envolvida, não tenho distância da minha cultura, sou parte dela e vivo-a. Tudo o que lhe diz respeito, afecta-me mais do que outra qualquer. O meu habitat natural é este fim de mundo, com um clima maravilhoso, paisagens fantásticas, praias espectaculares, com o senão, “está tudo fodido” como costuma dizer a minha irmã arquitecta, que trabalha na área do património arquitectónico à mais de vinte anos, uma especialista classificada que neste momento poderá ficar sem emprego, no actual momento politico do país. O principal problema de Portugal são os portugueses, no qual estou incluída? São os políticos corruptos? Vou começar pela geografia: Portugal é um pequeno país ancião, com várias civilizações por camadas, localizado entre a orgulhosa Espanha, à qual resistimos ao contrário dos outros povos ibéricos e o infinito mar. Este é o primeiro aspecto difícil no país: o seu isolamento geográfico leva sempre a duas hipóteses, voltar costas a Castela construindo muralhas ou aventurar-nos no misterioso grande mar. Os portugueses ou se fecham no seu território, orgulhosamente sós, permanecendo ignorantes, tacanhos e por isso são o povo mais desconfiado da Europa Ocidental, ou se aventuram no mundo; em cada português existe sempre esta dualidade, o descontentamento com a situação do seu habitat natural e a crença no paraíso que é o desconhecido resto do mundo. Os portugueses que habitam o país fecham-se com medo, desejam o que não têm neste pequeno território, invejam o que não conhecem, acham que o outro está sempre melhor, têm vergonha do país em que vivem e acreditam que tudo é maravilhoso noutros sítios, o que é mentira; os que habitam no exterior sentem saudades, têm um “cortinado roxo que lhe cobre o coração”, como cantam popularmente os açorianos, um luto em relação ao paraíso perdido, a pátria que entretanto idealizaram à distância, mas basta uma pequena estadia por cá para se revoltarem de novo e partirem em busca da ilha dos amores. Quanto ao facto de o nosso país ter uma classe politica corrupta, temos 800 anos de vida sem tradição democrática, aquilo a que chamo de civilização por camadas, um enguiço e com o isolamento geográfico tudo chega a Portugal tardiamente, até a democracia tardou, chegou com uma revolução de flores. Existe um aspecto que me preocupa deveras no país actual: a educação. A democratização do ensino começou em Portugal nos finais dos anos 60, com as reformas de Veiga Simão, pouco antes do 25 de Abril, com cerca de 200 anos de atraso, visto que é uma ideia que nasceu na revolução francesa. Se tivermos em conta os países do norte da Europa, que com a reforma protestante iniciaram a alfabetização das populações, consequência de um regresso à leitura da Palavra bíblica, o atraso ainda é maior. Preocupa-me este país sem uma politica de educação como deve de ser, porque poderá ser um país sem futuro. Assim, preocupa-me o estado da educação aqui e agora, que não acompanhou as mudanças sociais dos últimos anos, o actual descrédito do ensino público, com um primeiro ministro a promover o Magalhães, a máquina-solução para todos os males, quando as máquinas nunca poderão substituir as pessoas. Preocupa-me que a educação com qualidade seja de acesso apenas às elites, um verdadeiro retrocesso em termos do desenvolvimento do país democrático, que era rural há trinta anos atrás e se transformou no actual audiovisual em tão pouco tempo; houve mudanças radicais em tudo e o aspecto positivo é que agora fazemos parte da Europa comunitária, abrimos as portas e ainda bem que assim foi, a milhares de retornados depois do 25 de Abril, à imigração dos brasileiros, dos países africanos, dos outros países da Europa, hoje em dia podemos circular livremente no continente europeu e o território português é multicultural – a meu ver este aspecto dará origem à verdadeira revolução que já começou, o cocktail de culturas das próximas gerações irá derrubar as muralhas do orgulhosamente sós, será através do sangue, dos mestiços, os preconceituosos e medrosos tabus portugueses serão destruídos através de uma revolução de valores e costumes; a falta de tradição democrática e a classe politica corrupta, neste meu ponto de vista optimista, será derrubada por esta verdadeira revolução tardia, acredito nela. Os portugueses estão a mudar, os filhos da democratização do ensino, de que faço parte, serão a geração de transição para a verdadeira revolução no país, porque neste momento o mundo já está no interior do nosso território, nos portugueses que para além de continuarem a ser celtas, ibéricos, lusitanos, latinos, suevos, visigodos, árabes, judeus, são agora também africanos, brasileiros, europeus de leste, do norte, do sul, viva a nova invasão dos “bárbaros”, bem necessitados estávamos dela. Apesar da situação do aqui e agora do país me indignar, tenho esperança que a revolução já começou, uma verdadeira revolução cultural, o Portugal multicultural.

11/01/09

Este país aqui agora

[Rui Almeida]


O que dá vontade é dizer mal do país, aqui e agora. O que nos vai entrando pelos olhos dentro, ainda para mais em tempo da tão apregoada crise, não ajuda nada a expressões de optimismo. Mas muitas vezes parece-me que este hábito de falar mal resulta de uma visão parcelar da coisa, como se o “país” fosse apenas a estrutura que tem a responsabilidade de zelar pelo bem comum, ou seja, o Estado (ou, numa versão mais alargada, a “classe política”).

Ora, um país é bem mais do que aqueles que, bem ou mal, o governam. O Portugal daqui e de agora é um conjunto de várias dimensões. É o ponto de chegada provisório de um percurso histórico de 900 anos ou mais, que arrasta consigo um conjunto de mitos e um imaginário colectivo; é um território, com fronteiras, paisagem e especificidades geográficas, sujeitas à intervenção humana; é a formalidade constituída em Estado, do qual emanam as leis e as estruturas que regem a comunidade de cidadãos que vivem nesse território; é a imagem distorcida, caricaturada, diminuída, aumentada, omissa, fragmentária, que é dada por jornais, rádios, televisões, publicidade, discursos políticos e outros meios semelhantes; é o que se passa nas ruas, nos transportes públicos, nos cafés ou dentro das casas de cada um dos cidadãos que formam esta realidade colectiva. Afinal, um país será uma espécie de confronto entre o quotidiano de cada um dos seus cidadãos e o colectivo em que se constituem, dentro das suas condicionantes geográficas e culturais.

Isto para chegar onde? Para chegar ao que me parece ser o desperdício das possibilidades que a democracia nos permite e de que o hábito de falar mal do tal “país” é um dos mais evidentes sinais. Habituámo-nos a remeter as soluções para “eles”, os que “são sempre os mesmos” e, como “eles” não trazem as soluções, será sempre “deles” e nunca “nossa” a culpa.

Bem sei que são muitos e muitos anos de poderes, mais ou menos obscuros, instalados em cumplicidades entre política e economia. Bem sei que a necessidade de sustento obriga a maior parte das pessoas a não ter tempo para mais nada senão para a oscilação entre as horas e horas de trabalho e o pouco que têm para descansar. Bem sei que vêm solicitações de todos os lados que nos limitam a capacidade de pensar e, consequentemente, de agir. Bem sei que muita gente tem de optar entre a precariedade e o nada. Bem sei.

Mas a verdade é que, por mais degradada que esteja, vivemos numa democracia e, por isso, compete a cada um de nós intervir, conforme as suas capacidades e possibilidades, para a concretização do bem comum. E não faltam exemplos de gente que se junta para agir, denunciar, intervir ou reflectir. Não faltam exemplos que provam que é possível a criatividade para concretizar ideias positivas e transpor obstáculos.

É claro que há aquelas fragilidades estruturais que sabemos, a começar pela educação para a cidadania e pelo nível cultural, mas não é tão mau como parece, nem são só “eles” que são o país.

07/01/09

Aqui agora

[Pedro Afonso]

Aqui? Agora? São advérbios que pouco se vão efectivando por aqui, agora. Talvez seja isso mesmo a vida neste país: "um lugar fora do tempo e do espaço".

O que vejo como principal característica "do que é a vida neste país aqui agora" é, talvez, a "não inscrição" - algo como o que apresenta José Gil no "Portugal, O Medo de Existir". Viver, aparentemente, sem riscar o chão, sem tocar e sem ser tocado. Vou experimentando uma sensação que se aproxima disto: vamos a um evento, imaginem um debate público, no qual há um apresentador. Esse apresentador faz uma introdução ao tema, lança alguns tópicos, algumas questões. Depois passa a palavra ao público. Nesse momento, todos aplaudimos e abandonamos a sala.

A questão da “não inscrição” passa ainda por outro sintoma, creio, que já é também um velho companheiro da vergonha, da egotrofia e da inércia: o "falam, falam, falam, mas não fazem nada". Mesmo o "falar" é já em si um sintoma, pois não é "conversar", nem "discutir", nem qualquer outra forma que implique interferência. Aqui, agora, é já há algum tempo, é possível dizer o que se quer, tanto que nunca há consequências. Nem as consequências daquilo a que normalmente se chama "passar das palavras à acção", nem o ser chamado à responsabilidade pelo que se disse, pelo que se mentiu, pelo que se prometeu. Isto ao nível do "Eles", mas também do "nós". Falamos, falamos, falamos, mas mal nos pedem fundamentos, passamos ao assunto da bola.

Tal como uma conversa não passa, na maioria das vezes, de conversa de café, uma intenção não passa, na maioria das vezes, de um impulso de raiva ou de tristeza, ou ambas, e morre logo ao primeiro episódio da novela, ou a meio do filme da tanga que dá na mesma noite. As ruas das nossas cidades estão mortas, não há vida pública, apenas os carris pelos quais nos deslocamos diariamente, as cadeiras de café onde repetimos os mesmos diálogos todos os dias. Aliás, tenho dúvidas de que haja mais do que um dia, aqui e agora.

Não há vida pública, e isso deve-se a não haver nem desejo, nem energia, mas, principalmente, a não haver cultura para participar. Somos do país das queixinhas e do sofá. Queixamo-nos na expectativa de que alguém ouça e resolva a questão e sentamo-nos onde quer que seja, em frente do quer que passe, afundando-nos num mínimo conforto momentâneo.

Para mim, a vida passa por muitas questões que não se prendem com o lugar e o tempo em que se vive, mas também passa, e deveria passar por aqui e agora, mas passa pouco, muito pouco, cada vez menos. Claro, isso tem tudo a ver com ser este aqui e agora.

21/12/08

Portugal: acho que o que gosto em ti, o que me motiva, é o teu sorriso transversal

[Rita F.]

Há tantos temas que me interessam em Portugal que tenho muita dificuldade em escolher, embora à partida me interesse a inveja, por um lado, e a lágrima, por outro.A inveja é uma baixeza, e penso que todos os Portugueses, em geral, o sabem. Mas a verdade é que me parece, de facto, que somos um país invejoso. No entanto, não somos abertamente invejosos, abertamente retorcidos e asquerosos como os bastardos das peças do Shakespeare. A nossa inveja consegue uma subtileza de que só nos apercebemos através de pequenos indícios, como pequenos olhares azedos escondidos por detrás de um sorriso, ténues ataques verbais, ligeiras tentativas de demonstrar uma autoridade inexistente e absurda. Quando invejamos, demonstramos a inveja ao tentar, de forma inútil e estéril, ser melhor de quem nós sabemos que é melhor do que nós. Em vez de nos encherem de alegrias, as pessoas de qualidade, inteligentes, sensíveis, competentes, são antes consideradas aves raras e incomodativas que nos obrigam ao confronto com as nossas próprias limitações. E preferimos então entregarmo-nos à bílis da inveja, conscientes da nossa mediocridade, mas incapaz de a admitir.

A nossa incapacidade para a lágrima é outra coisa que me intriga. Tenho pensado nisto, e não me parece que os Portugueses sejam muito dados ao choro, o que me espanta verdadeiramente, dado a miséria e as queixas em que somos peritos. Queixamo-nos tanto, e ainda mais ao percebermos que temos todas as razões para isso, porque somos pobres e feiosos. Devíamos chorar todos os dias. Mas não. A nossa cara é enfiada, olheirenta, estafada, mas não choramos. Mesmo os fadistas, que se entregam tanto ao negro e à sombra, não choram. Parece-me que, apesar de toda a educação ultraromântica de que se queixava o Eça, e que me parece ainda permanecer (a titi a tratar do seu Eusebiozinho, o tesouro da casa, sobreprotegido e medíocre, a recitar um poema que era bonito por ser muito triste, coitadinho), as lágrimas não são o nosso forte. Somos educados a engolir as lágrimas, literalmente. Aguentar e falar, queixar até que a voz nos doa, mas nunca chegar ao ponto de chorar.

No fundo, tanto a inveja subtil como a nossa contenção com as lágrimas reflectem, de alguma forma, uma característica nossa que talvez seja aquela que de facto me interessa verdadeiramente: a “transversalidade”. A incapacidade de sermos preto no branco, directos, incisivos. Fazemos tudo por portas travessas – e esta expressão é muito significativa. Não me parece que seja necessariamente um defeito. Não pretendo apresentar a nossa “transversalidade” como se fosse um defeito, pois não é assim que eu penso nela. Aliás, a primeira vez ouvi que ouvi falar disto até foi sobre as formas de tratamento da língua portuguesa, tema que me é caro. A miríade interminável de formas de tratamento de terceira pessoa (formas nominais, verbais, sem esquecer o famigerado “você”!) demonstra bem a nossa sofisticação e vontade, pelos visto indómita, de evitar o confronto directo que a segunda pessoa exige. Sempre o você, nunca o tu.

Porque será?

19/12/08

A Vergonha

[Luís Filipe Cristóvão]

Das muitas maneiras de começar a minha participação neste debate, decidi que a mais plausível, por ser aquela que mais rapidamente me veio à cabeça, é a vergonha como sentimento associado ao ser português. Embora o discurso oficial esteja associado à Saudade, a verdade é que hoje não queremos voltar atrás em nada, até porque, a bem da verdade, o povo português, enquanto povo, nunca se sentiu grande coisa, havia era mais dinheiro nas elites. Portanto, não queremos hoje entrar em guerra com Espanha, nem armarmo-nos em marinheiros, nem ter um império de Minho a Timor, nem nenhuma dessas histórias saudosistas. Aquilo que nós queremos, acima de tudo, é sentirmo-nos bem connosco próprios. Mas, certamente por escolhermos mal os métodos pelos quais avaliamos essa auto-satisfação, sentimos vergonha.

Sentimos vergonha da nossa selecção de futebol, por “só” irmos aos quartos-de-final do Europeu, por “só” ficarmos em quarto lugar no mundial, sem pensarmos que para se chegar a essas posições há um treino e esforço intensos, diários, insistentes, que não se coadunam com a nossa ideia de que os rapazes da selecção são uns calões vaidosos.

Sentimos vergonha no nosso primeiro-ministro, por ele ir para cimeiras internacionais armado em vendedor de computadores ou por declarar aos quatro ventos o seu seguidismo em relação às decisões do governo americano. Temos vergonha da falta de tacto dos nossos ministros, assim como temos vergonha da tacanhez dos nossos sindicalistas.

Sentimos vergonha da oposição, porque se ocupa a trucidar os seus próprios aliados, a contradizer os seus próprios princípios, porque parece que dez linhas num jornal são mais importantes do que ter uma ideia para resolver os problemas das pessoas que esperam deles alguma coisa.

Sentimos vergonha dos nossos frágeis prosadores mais premiados, ou porque viraram espanhóis, ou porque não conseguem fazer duas declarações coerentes seguidas. Sentimos vergonha dos nossos grandes poetas porque, aparentemente, ninguém os lê ou compreende para além da fronteira Caia/Elvas. Ou então ficamos muito surpreendidos, por haver alguém que lê e valoriza imenso aquele poeta nacional que nós ainda nem sequer lemos.

Sentimos vergonha dos nossos salários, dos nossos empregos, das nossas vidas profissionais, porque faça o que se faça, em Portugal, é tudo pequenino, país de primos e conhecidos, onde toda a gente sabe quem é toda a gente e quase não se dá um passo sem encontrar alguém que nos chame pelo nome e nos dê uma palmada nas costas. As perspectivas, aqui, são curtas, são poucas, e vivemos assim com vergonha de sermos portugueses aqui e agora.

Chegamos até ao ponto de sentirmos vergonha daquilo que poderíamos ter de melhor, o sol, a praia, o país bom para turista. Há dias, num encontro fortuito com um australiano de passagem por Portugal, perguntou-me ele que cidades o aconselharia a visitar, quais as mais bonitas. E a verdade é que, tirando as escolhas mais óbvias (Lisboa, Sintra, Porto) que ele já tinha visitado, os restantes pontos de interesse onde ele poderia chegar sem sentir uma enorme dificuldade com as ligações de transportes públicos, eram tristemente desinteressantes. E, porra, nem imaginam a vergonha que eu tive disso.

O que é a vida neste país aqui e agora?


[Henrique Manuel Bento Fialho]



Esta será apenas a primeira de outras respostas que se anunciam a um desafio colocado pelos ilustres Manuel A. Domingos e Luís Filipe Cristóvão. Indo directamente ao assunto, julgo existirem duas formas de olhar para a vida no Portugal moderno. A primeira é a de quem olha de dentro para fora, a segunda será a de quem olhe de fora para dentro. De dentro para fora, eu diria, citando o Ruy Belo de Na Senda da Poesia, que «é realmente uma desgraça ter nascido em Portugal. Sentimo-lo quando nos nasce um filho. Parte para a vida em desvantagem». Esta desvantagem refere-se à dimensão do país, uma dimensão não necessariamente geográfica, mas cultural no sentido mais lato do termo. Podemos, obviamente, fazer algum malabarismo e compararmo-nos à imensa maioria de países no mundo que se encontram ainda pior que Portugal. Mas esse exercício não só é inútil, porque nos distrai dos nossos problemas, como acaba sendo capcioso. Devemos comparar-nos com os países da União Europeia, os de uma mesma família de que, por diversas razões, somos parte integrante. E aí a comparação deixa-nos muito desanimados. A vida neste país, assim pensada, torna-se decepcionante. Pessoalmente, julgo que o maior problema de todos, outros haverá tão ou mais importantes, resulta de um burguesismo estupidificante que ocorreu no Portugal dos últimos 30 e qualquer coisa anos - «Burgueses somos nós todos / desde pequenos» (Mário Cesariny). Isto deve-se ao facto de a clara melhoria de condições de vida não ter sido acompanhada por uma mudança de mentalidades, ou seja, o progresso económico não se viu acompanhado pelo progresso cultural. A falência da educação - também em sentido lato, pelo que não me refiro exclusivamente à falência da escola (essa há muito está falida) - é, talvez, o princípio base desta gigantesca assimetria. O que temos hoje é um país de saloios endinheirados e de outros saloios que, não sendo endinheirados, imitam como podem e sabem os primeiros. A pobreza de espírito está à vista, nota-se em gestos quotidianos muito simples, é assaz visível na febre consumista que assalta as pessoas na época que estamos a viver neste preciso momento. E note-se como tal pobreza de espírito se reflecte em comportamentos básicos, da mais elementar cidadania, olhando para a fotografia que encima este texto. Trata-se de um dispositivo para as pessoas de cadeira de rodas poderem abrir as portas de um centro comercial recentemente inaugurado em Caldas da Rainha. Foi rapidamente transformado num cinzeiro. Se pensam que apenas uma ou duas pessoas o transformaram num cinzeiro, desenganem-se. Todos os dias o dispositivo tem sido limpo, todos os dias aparece imundo de beatas e de cinza. Depois também podemos olhar para a vida no Portugal de agora pensando de fora para dentro. E aí ocorre-me uma frase do Luiz Pacheco numa carta dirigida ao António José Forte, datada de 12 de Junho de 1961: «Os saloios, como sabes, somos nós todos ― vistos de Paris». A frase não é de agora, mas, para mal dos nossos pecados, continua a fazer todo o sentido. Temos gente de muito valor em Portugal, temos gente portuguesa de imenso valor a trabalhar no estrangeiro, o país é bonito, embora o tenham destruído em grande parte nos últimos, lá está, 30 e qualquer coisa anos, temos tido políticos de merda – pensamento, talvez, tipicamente português, mas irrevogável -, temos uma culinária de excelência, boa música, bons poetas, prosadores sofríveis, 1 Prémio Nobel da Literatura, uma nação futebolística… Mas há algo que nos faz sofrer quando nos pensamos portugueses, quando temos que, diariamente, nos confrontar com as atitudes mesquinhas, incultas, estupidamente arrogantes, saloias no pior sentido do termo, medonhamente conservadoras e elitistas, com os comportamentos burgessos da imensa maioria dos portugueses. Em suma, e voltando a citar, coisa também muito portuguesa, «o povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades» (Almada -Negreiros no agora de 1917).

18/12/08

Algumas razões

[manuel a. domingos]

Sempre que alguém, na casa dos trinta, diz que a vida está difícil, vem sempre outro alguém dizer que antes era pior. Entende-se por antes o período histórico do Estado Novo. Não nego tal facto: houve a guerra colonial – que arrastou para a lama e o capim a juventude deste país –, um senhor que fez aquilo que quis e o que não quis e, é claro, a polícia política. No entanto, nós, aqueles que estão na casa dos trinta, não precisamos de uma guerra para sermos atirados para a lama e o capim – na verdade nunca chegamos a sair de lá, reféns que estamos da lama e do capim dos nossos pais –, não precisamos de um ditador – pois desde o 25 de Abril que o destino de Portugal é orientado pelos mesmos, apesar da rotatividade democrática –, e não precisamos de polícia política – pois há muito que não se faz verdadeira política em Portugal, isto é, uma política que beneficie todos e não alguns, uma política que seja uma verdadeira ameaça para o poder estabelecido. O que temos, desde o 25 de Abril, são simulacros e compadrios, batalhas previamente acordadas.

Assim, falar deste país, aqui e agora – sem repetir o que outros já repetiram –, é uma tarefa que, à primeira vista, parece difícil, impossível e ingrata. Contudo, temos a vantagem de viver neste país, aqui e agora, enquanto outros parece que ainda vivem no país acolá e de ontem. Evitar ser pessimista é tarefa inglória em Portugal. Tentar não falar mal de tudo e de todos, também. Procurar pensar o meu país, aqui e agora, será considerado por muitos como um mero exercício de retórica ou, na pior das hipóteses, um capricho da juventude. E é aqui que reside, no meu ponto de vista, o primeiro problema ou questão (se preferirem): em Portugal é necessário ter mais de quarenta anos para ser levado a sério ou para poder dizer que viveu.

Ora, todos aqueles que nasceram na década de 70, do século passado, ainda não têm quarenta anos. Nasceram ou antes ou depois do 25 de Abril, mas ninguém sabe o que é viver, realmente, em ditadura. Aquilo que sabe da ditadura é a visão que outros deram dela. O mesmo se pode aplicar ao 25 de Abril e aos chamados anos do PREC: o que sabemos desses anos são estórias contadas, quer sejam utopias ou desenganos. Pergunto: o 25 de Abril cumpriu-se? Muitos dirão que não, pois o PREC (consequência directa do 25 de Abril) nunca foi concluído, devido a essa coisa que tem o nome de 25 de Novembro. Outros dirão que sim, devido, também, a essa coisa que tem o nome de 25 de Novembro. Estas duas datas, e todo o tempo que decorreu entre elas, são fundamentais para melhor se entender o Portugal aqui e agora. Bem vistas as coisas, somos seus reféns (mais da segunda do que da primeira data), sendo elas as principais responsáveis pelo actual estado do país, segundo uns e outros. São delas que nos temos de libertar. De outra forma continuaremos presos a esse passado ainda tão vivo na memória de muitos. Não digo com isto que devemos apagar a memória, digo apenas que não devemos viver refém dela.

Ponto da situação


Ideia: juntar os contributos de alguns portugueses sobre a situação de viver num país como o nosso neste determinado momento histórico pelo qual estamos a passar. A proposta não podia ser mais abstracta: cada um terá um país diferente (geográfica e culturalmente, cada um fez os caminhos que fez), e o seu momento histórico será deveras influenciado pelos seus interesses pessoais. Estará aí mesmo o interesse deste exercício: gerar algum debate em volta da forma como sentimos e vivemos o nosso país e os nossos tempos.

Porquê: a falta de um pensamento que seja enraizado na experiência de um viver no nosso tempo. Não nos reconhecemos nas análises que são feitas, nem nos movimentos que se constituem em volta do poder. Não queremos poder, mas queremos perceber. Pensando em conjunto, pode ser que se encontre alguma coisa. Pode ser que não.

Modo: cada um dos autores será desafiado a escrever pequenos textos sobre diversos temas. O primeiro desafio é escrever uma apresentação do que é a vida neste país aqui agora para cada um. Neste desafio, para além da apresentação do ponto de partida de cada um, esperamos que possam propor uma direcção para a reflexão que vamos fazer. Essas propostas constituirão os desafios seguintes do grupo.